Sábado, 03 de maio de 2025
Por Redação O Sul | 6 de dezembro de 2020
O cantor e compositor Caetano Veloso encerrou o penúltimo dia da Flip 2020 questionando o binarismo sexual e de gênero ao lado do filósofo Paul B. Preciado. Preso na ditadura militar sob a acusação de ser um cantor “subversivo e desvirilizante”, Caetano afirmou que os 54 dias que passou encarcerado apagaram nele a atração por outros homens, e explicou por que, na juventude, recusava ser identificado como “bissexual”.
Recentemente, a Companhia das Letras lançou “Narciso em Férias”, livro onde o artista baiano detalha a experiência da prisão. O texto foi retirado de um capítulo de “Verdade tropical”, biografia do cantor de 1997, e deu origem ao documentário homônimo, disponível no Globoplay. No encontro, Caetano contou que o título foi inspirado em um livro de F. Scott Fitzgerald, e explicou o porquê da escolha: “Fiquei numa solitária. Depois de alguns dias sem ninguém falar comigo, deitado no chão, houve uma espécie de apagamento do meu reconhecimento de mim mesmo. Senti que Narciso estava, de fato, em férias”.
“Apagar” foi o verbo utilizado pelo artista para relatar o efeito que o cárcere teve sobre sua sexualidade — particularmente em relação ao desejo e à afetividade por pessoas do mesmo gênero.
“O espaço muito masculino da prisão militar causou outro apagão no Narciso aqui, que foi da atração sexual e sentimental por homens. Fiquei com uma rejeição sexual em relação à figura dos homens, que eu não tinha “, recordou Caetano. Intitulada “Transições”, a mesa era uma das mais aguardadas desta edição da Flip, que acontece de maneira totalmente virtual. A conversa foi gravada na semana passada, e contou com a mediação do jornalista mexicano Ángel Gurría-Quintana.
Durante o evento, Caetano também relembrou paixões que teve por homens e mulheres na juventude, mas contou que recusava ser rotulado como “bissexual”.
“Aos dezenove, me apaixonei por um amigo. Apaixonar significa você sentir aquela imensidão dentro da sua alma na presença da pessoa, no pensamento, nos sonhos. Não teve história, porque ele não quis. Podia ter me casado com ele, e tenho certeza de que meus pais assimilariam muito bem. Mas muitas pessoas que eu conhecia usavam essa expressão “bissexual” para efeitos muito inautênticos. Então eu dizia: “também não quero esse (termo)”.”
Em espanhol, o cantor recitou versos de uma poeta russa do início do século XX que falavam sobre amar somente um gênero — e o horror que isso provocava nela. Antes de passar a palavra a Preciado, arrematou com uma breve fala sobre sua própria visão da masculinidade e do binarismo sexual: “O modelo de masculinidade que é ensinado desde a infância pela sociedade não foi aceito por mim como o indiscutível, ao contrário. Foi algo com que eu tive uma relação, mais do que de desconfiança, de problematização, que nunca morreu”.
Masculinidade
Preciado, que recentemente lançou pela Zahar “Um apartamento em Urano”, um relato de sua própria transição de gênero, e se define como um “dissidente do sistema sexo-gênero”, chamou a atenção para a relação entre a masculinidade e a violência, que, segundo ele, marca a criação da sociedade moderna: “A masculinidade soberana se define pelo uso legítimo da violência. A história da modernidade colonial é também uma história do patriarcado, que fabricou corpos soberanos ao lhes conceder o monopólio legítimo dessa violência. E esse corpo soberano é um corpo masculino e branco, que tem o poder de ferir e matar outros corpos subalternos.”
Para o filósofo espanhol, o avanço do conservadorismo, da extrema-direita e de expressões neofascistas no Ocidente não apenas expressa essa violência, como também é uma reação ao debate sobre o pensamento patriarcal.