Terça-feira, 01 de julho de 2025
Por Redação O Sul | 16 de agosto de 2020
O anúncio foi feito com ares de triunfo de nação predestinada. No meio da semana, a Rússia confirmou o registro da primeira vacina contra a covid-19, mesmo sem todos os testes usuais. Ela se chama Sputnik V, referência ao primeiro satélite orbital lançado pela União Soviética, em 1957, e já começou a ser produzida. A busca por uma vacina se tornou uma versão repaginada, e arriscada, das corridas espacial e nuclear daquele período.
Especialistas em saúde pública alertam que essa pressa pode resultar em uma pandemia mais duradoura, ao impedir a alocação mais eficiente das doses para prevenir a covid-19. Alguns países estão usando seu dinheiro para tentar comprar o primeiro lugar na fila de suprimentos, caso uma vacina experimental se mostre eficaz.
EUA, Reino Unido, União Europeia e Japão saíram na frente na corrida para estocar vacinas contra o coronavírus e, juntos, já reservaram mais de 1,3 bilhão de doses – todos esses imunizantes estão em fase de testes. O Brasil fechou acordo em junho para receber 100 milhões de doses da vacina produzida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca. Israel desenvolve sua vacina e diz que pode ter 15 milhões de doses até o fim do ano. Todas a empresas farmacêuticas da Índia, uma potência no setor, fecharam acordo para garantir doses ao país durante a produção. Ao menos 165 vacinas contra o coronavírus foram criadas, e 31 vacinas em testes em humanos.
Os projetos envolvem empresas de ao menos 31 países. Alguns países estão usando seu dinheiro para tentar comprar o primeiro lugar na fila de suprimentos, caso uma vacina experimental se mostre eficaz. Especialistas em saúde pública alertam que tal corrida pode resultar em uma pandemia mais duradoura, ao impedir a alocação mais eficiente das doses para prevenir a covid-19.
“Tal competição estimulou um fenômeno que ficou conhecido como nacionalismo da vacina – a disputa de governos para garantir a seus cidadãos doses de candidatas promissoras”, disse ao Estadão David Fidler, pesquisador de saúde global do Council on Foreign Relations e ex-consultor jurídico da OMS. “A disputa internacional para encontrar uma vacina aumentou temores de que a necessidade dos países de declarar vitória sobre a pandemia logo poderia levá-los a contornar as salvaguardas que protegem as pessoas de produtos médicos não comprovados.”
Não é só a Rússia que está fazendo isso. Pesquisadores nos Estados Unidos, Reino Unido e China trabalhando em vacinas rivais também estão alterando regulamentações estabelecidas para acelerar seu trabalho. A China começou a testar uma vacina não aprovada em seus militares. O presidente Donald Trump já foi acusado por especialistas de acelerar o processo para obter uma vacina antes de novembro e tentar tirar vantagens eleitorais dela na eleição americana.
Mas a Rússia simplesmente atropelou as regulamentações. A vacina russa sequer havia começado os testes clínicos de fase três – quando a substância é testada em milhares de pessoas. O lançamento apressado de uma vacina ineficaz – ou pior, insegura –, argumentam os especialistas, seria um grande revés para os esforços globais de imunização em massa.
Este risco levanta dúvidas sobre a real vantagem de um país de um país ter a vacina primeiro. “Para a Rússia, liderar a corrida das vacinas é um caminho para uma maior influência geopolítica. Mas o país também está tentando evitar parecer dependente das potências ocidentais, com as quais as relações são historicamente ruins”, disse Nikolas Kirrill Gvosdev, estudioso de relações internacionais russo-americanas no Colégio de Guerra Naval dos EUA.
“A Rússia não está apenas se voltando para seu parceiro estratégico de longa data, a Índia, mas também alcançando uma série de potências intermediárias, a maioria das quais teve atritos em suas relações com os EUA nos últimos anos”, afirma Gvosdev. “Esta oferta de vacina é o esforço da Rússia para estabelecer a liderança de um grupo intermediário de nações que querem evitar a escolha binária de Washington ou Pequim. E é parte dos esforços de Putin para manter um papel de liderança global.”