Quarta-feira, 11 de junho de 2025

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Colunistas As mesmas trincheiras

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Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

Se você gosta de cinema ou é curioso, provavelmente lembrará do épico “Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick e Arthur Clarke. Também não lhe passará despercebida a música “Also Sprach Zarathustra”, de Richard Strauss, igualmente grandiosa e que confere uma conotação de tensa expectativa ao filme, que ousadamente conecta tempos e espaços distantes, tendo a experiência, os avanços humanos e seus incomensuráveis paradoxos, como fios condutores da trama. Por certo, ainda, soará bastante familiar a sequência icônica, descrita brevemente abaixo, do início do longa-metragem… Em algum lugar da África, perdido no tempo, hominídeos lutam ferozmente pela sobrevivência. Grupos se digladiam, fêmeas tentam defender seus filhotes enquanto assistem, apavoradas, corpos serem dilacerados por dentes, pedras ou qualquer objeto pontiagudo que pudesse causar ferimento. No outro dia, recolhidos no fundo de uma pequena caverna, o bando, aos poucos, começa a sair. Lá fora, em parte refeitos após mais uma batalha, comem raízes na companhia de outros animais e testemunham um de seus membros ser atacado por uma leoa faminta. Um pouco depois, enquanto um deles mexe na ossada de um animal morto, percebe um longo osso exposto que lhe chama a atenção. Fita-o com ar de curiosidade e logo conclui ter descoberto um artefato poderoso. Segundos após, avistam-se crânios sendo esfacelados pela arma recém-descoberta. A aurora do homem começava a ser desenhada com uma lógica de violência que viria a acompanhar a nossa espécie até hoje, cujas cores se tornariam até mais dramáticas e paradoxais.

Kupiansk, Ucrânia, 2023. Soldados ucranianos tentam retomar a cidade invadida pelos russos, lutando uma guerra de atrito, com o uso intensivo de artilharia e trincheiras, mais de 100 anos após milhares de soldados terem perecido entre o Canal da Mancha, Bélgica e Suíça, naquela que ficou conhecida como a Guerra de Trincheiras. Hoje, porém, em vez de um improvável fêmur como arma, não mais bandos, mas modernos exércitos portam fuzis de última geração e muitos soldados filmam seus movimentos, ou sua própria morte ao vivo, através de seus celulares, conferindo às cenas atrozes a improvável fusão entre ficção e realidade. Nesse mesmo instante e na mesma África mãe, um velho leão acaba de ser destrinchado ainda vivo por um punhado de hienas famintas. No auge de suas existências, os leões governam, perseguem outros animais, devoram, engolem vorazmente e deixam suas migalhas para as hienas. Mas a idade vem rápido. Ele vagueia e ruge até ficar sem sorte. Será encurralado pelas hienas, mordiscado e devorado. Leões, hienas e outros animais são o que são e não podem ser de outro jeito. Não há sentimento, não há compaixão. A vida se desenrola em toda a sua crueza. A essência, nessa perspectiva, lhes precede a existência. Nós, humanos, segundo Sartre, temos, ao contrário dos animais, uma existência a nos esculpir, nos definir e nos humanizar. A nossa existência, portanto, precede a essência. Não somos escravos de uma essência que nos condena à barbárie, embora as trincheiras das planícies ucranianas e o contraste chocante com a vida selvagem, separadas pelo tempo e pelo espaço, insistam em nos dizer o contrário.

Pode ser reconfortante saber que, diferente dos animais, tenhamos a faculdade da razão, podendo discernir entre o bem e o mal. Contudo, os sinais que temos emitido não são encorajadores, tampouco sinalizam na direção de maior entendimento, cooperação e diálogo. As savanas africanas, que serviram de palco para o surgimento do Homo Sapiens, evento tão bem retratado pelas lentes geniais de Kubrick, permanecem com a mesma lógica de outrora, sob a lei do mais forte, do mais rápido, do mais astuto. O soldado que hoje tomba na lama de uma trincheira na Ucrânia, ou a violência que banaliza a morte nas dezenas de conflitos que permeiam o planeta, porém, não deveriam estar perante desígnios teimosamente tão primitivos, e isso, claramente, é um grave alerta para nosso próprio futuro.

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

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https://www.osul.com.br/as-mesmas-trincheiras/ As mesmas trincheiras 2023-08-31
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