Quarta-feira, 18 de junho de 2025
Por Redação O Sul | 19 de dezembro de 2019
Sem saber ler nem escrever, e com a rotina de ir trabalhar e voltar para casa, o vaqueiro Eldis Trajano da Silva, 36, se viu em um labirinto quando foi preso pela segunda vez na vida. Foi detido em meados de 2017 no lugar do irmão, Eudes Trajano da Silva, 35, procurado pela Justiça por fuga do regime semiaberto. O vaqueiro ficou por pouco mais de dois anos atrás das grades. A família sequer tinha notícias dele, que foi solto no último dia 9.
O problema, segundo o juiz Henrique Baltazar, que concedeu o alvará de soltura, é que o irmão Eudes usou a documentação do familiar em crimes anteriores. No site do Tribunal de Justiça constam processos que deveriam ser atribuídos a Eudes no nome de Eldis.
“Entendi que realmente ele [Eldis] estava preso no nome do outro, porque todas as vezes que o outro [Eudes] era preso, dava o nome dele”, conta o juiz. Casos como de Eldis não são exceção no país neste ano. Em novembro, foi solto o cabeleireiro Sidney Sylvestre Vieira, 31, depois de ficar 16 meses detido sem provas em Itapecerica da Serra (SP). Ele era suspeito de participar da morte de um homem que diz nunca ter visto.
Em janeiro, o pai do DJ Leonardo Nascimento, 27, conseguiu soltar o filho após uma semana detido suspeito de assassinar um jovem de 22 anos. A única semelhança entre o suspeito e o DJ preso de maneira equivocada era a cor de pele, negra. Eldis é natural do Piquiri, distrito de Canguaretama, a 79 km de Natal (RN). Ainda abalado, conta que tem dificuldades para comer, dormir e sair de casa.
Diz sentir dores nas costas por procedimentos na cadeia —sempre se abaixar e ficar encurvado, abraçando as pernas. Os pouco, mais de dois anos na prisão são constantemente lembrados, diz, como “uma tortura que levou parte de minha juventude”.
“Tá sendo difícil demais para esquecer os momentos que passei lá dentro. Apanhando, spray de pimenta. Sofri um bocado. Era pra Justiça ter conhecido o erro que meu irmão fez, os nomes que estavam errados. Uma parte de mim ele tirou, né? De construir alguma coisa. Tem que trabalhar pra construir tudo de volta”, disse Eldis à reportagem. A agricultora e tia de Eldis, Raimunda Trajano, 69, disse que não sabia onde ele estava esse tempo todo, mas que “tinha fé que ele estava vivo”.
Ela conta que, um dia antes da soltura, sonhou e sentiu que ele voltaria para casa. “Tinha essa esperança que um dia ele ia chegar. Foi a alegria maior do mundo. Foi o presente melhor que Deus me deu de Natal”. Analfabeta, ela revela que não tinha como procurar pelo sobrinho. Chegou a saber por um parente de outro preso que Eldis estava detido, mas não tinha como ir atrás dele.
“Ele mandou essa notícia só uma vez. Não pude ir, não sei ler, não sei de nada, não sei andar pelo meio do mundo”, diz. Essa não foi a primeira vez que Eldis foi preso. Em 2010, após briga, deu facadas em um primo e ficou detido por cerca de um ano. O crime foi qualificado como lesão corporal e ele foi condenado a quatro meses e três dias de prisão, sendo solto em 2012.
Sobre a pena mais recente, ele declara: “É uma tortura. Fica vindo na minha cabeça porque eu fiquei meio perturbado. Até hoje não esqueço dos momentos que passei lá dentro. Eu estando ali dentro estava arriscando a minha vida por causa do meu irmão. Eu pensava todo dia: meu Deus, o que eu estou fazendo aqui num canto desse? Não mexi em nada de ninguém e estou passando pelo que estou passando hoje. Vai dar um tempo pra esquecer o que eu passei lá dentro”.
O quebra-cabeça envolvendo o caso de Eldis começa pela própria família e o vaqueiro, que não sabem precisar quando ele foi preso. Porém, na Justiça, consta que foi em 28 de agosto de 2017, quando ele voltava da fazenda onde trabalhava na cidade de Pedro Velho. Analfabeto, Eldis não sabia diferenciar os nomes e estava sem documentos. A possível troca só foi percebida quando foram aplicar a medicação para HIV em Eldis na cadeia. Era seu irmão, Eudes, quem tinha o vírus. O vaqueiro, então, se recusou a tomar o coquetel. Um exame confirmou que ele não tinha Aids.