Segunda-feira, 08 de setembro de 2025
Por Redação O Sul | 7 de setembro de 2025
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm ignorado as normas do regimento interno ao deixar de submeter decisões monocráticas ao crivo dos demais integrantes da Corte. Desde 2022, a norma prevê que medidas cautelares tomadas por um único ministro sejam imediatamente levadas ao plenário ou à respectiva turma para referendo, de preferência em ambiente virtual. Na prática, porém, essa regra nem sempre é seguida.
Especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam que a violação é frequente e atinge até casos de grande repercussão. Procurado pela reportagem, o STF não se manifestou.
Entre os exemplos recentes da atuação estão decisões que mobilizaram desde atores políticos até grandes bancos. Uma delas é a cautelar do ministro Alexandre de Moraes que restabeleceu o decreto presidencial que elevou a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), após o Congresso ter derrubado a medida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que buscava aumentar a arrecadação do governo federal.
Outra é a liminar do ministro Flávio Dino que suspendeu a aplicação automática de atos estrangeiros no Brasil. Embora tenha sido proferida em ação sobre a validade de decisões da Justiça inglesa envolvendo o desastre de Mariana (MG), a medida foi estendida a qualquer ato estrangeiro, como a Lei Magnitsky, aplicada pelo governo dos EUA contra Moraes.
Juristas ouvidos pela reportagem sustentam que as decisões deveriam ter sido submetidas ao colegiado. “O problema não é apenas decidir sozinho, mas decidir sozinho sem permitir que os colegas se manifestem. A regra foi criada justamente para evitar isso”, disse Diego Werneck, professor do Insper, doutor em Direito pela Universidade Yale (EUA) e autor de O Supremo: Entre o Direito e a Política (História Real, 2023).
Werneck afirmou que o artigo 21 do regimento interno do STF estabelece que medidas cautelares de natureza cível ou penal, voltadas a evitar danos de difícil reparação ou a garantir a eficácia de uma decisão futura, sejam encaminhadas para apreciação do plenário ou da turma competente. “Em princípio, qualquer cautelar que produza efeitos concretos no mundo real estaria abrangida por essa regra.”
“Outro exemplo (de violação) que talvez tenhamos até normalizado é a participação do ministro Flávio Dino na discussão sobre emendas orçamentárias. Ele proferiu uma série de decisões, muitas delas criando medidas para garantir o cumprimento da própria decisão, de caráter cautelar, sem submeter o tema ao colegiado”, observou Werneck, em referência a processos envolvendo a indicação de repasses pelos parlamentares.
Com Luiz Fernando Esteves, professor do Insper e doutor em Direito do Estado pela USP, Werneck publicou uma coluna no site Jota em que expõe justamente a violação do artigo 21 do regimento do STF. Para os dois juristas, a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), determinada por Moraes, deveria ter sido submetida ao colegiado. O ministro, no entanto, alega que a medida já havia sido referendada em decisão anterior.
Segundo Werneck, o colegiado não aprovou a prisão domiciliar, mas apenas a possibilidade de que, em caso de descumprimento, uma cautelar pudesse ser adotada. “O que precisa ser aprovado não é a ideia geral de aplicar a cautelar, mas a aplicação concreta da medida”, disse. Para ele, permitir que um ministro leve apenas uma autorização genérica abre espaço para abusos. “O colegiado precisa decidir se a medida é necessária naquele caso específico.”
Esteves destacou que o regimento prevê que cautelares que resultem em prisão devem ser, obrigatoriamente, analisadas em sessão presencial, o que, em sua avaliação, adicionou uma camada extra de violação na decisão de Moraes.
Werneck alertou que a persistência de decisões monocráticas no STF gera três preocupações. Primeiro, disse, enfraquece a legitimidade da Corte, dando a impressão de que as decisões dependem de um único ministro, e não do colegiado. Segundo, concentra poder individual, transformando ministros em “superjuízes” capazes de suspender leis ou emendas constitucionais. Terceiro, aumenta o risco de captura política, tornando cada magistrado mais suscetível à influência de políticos e outros atores externos.
As críticas às decisões individuais não são recentes. Em 2013, o então ministro Joaquim Barbosa suspendeu, de forma monocrática, a Emenda Constitucional 73/2013, que previa a criação de Tribunais Regionais Federais. Passados 12 anos, a liminar que barrou uma medida aprovada por três quintos do Congresso segue sem julgamento pelo plenário.
O episódio é citado até hoje como exemplo da chamada “ministrocracia”. O termo, cunhado por Werneck e pelo professor da FGV Leandro Molhano Ribeiro, descreve uma prática rotineira no STF: ministros exercendo o poder de forma individual, geralmente por meio de decisões que suspendem leis ou determinam medidas de grande impacto sem apreciação do colegiado.
Após críticas sucessivas a esse modelo, o Supremo aprovou, em 2022, uma reforma regimental para limitar o poder individual dos ministros. Sob a presidência da então ministra Rosa Weber, a Corte estabeleceu que decisões monocráticas devem ser imediatamente submetidas ao colegiado e fixou prazo de 90 dias para que processos com pedido de vista sejam liberados para julgamento.
“A percepção de quem acompanha o Supremo é de que essa reforma, junto com a introdução do ambiente virtual, corrigiu ou tentou corrigir alguns problemas tradicionais do tribunal. Ainda assim, o individualismo persiste, talvez de forma um pouco mais sofisticada”, afirmou Ana Laura Barbosa, professora da ESPM e doutora em Direito do Estado pela USP. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.