Quinta-feira, 25 de abril de 2024
Por Redação O Sul | 12 de agosto de 2019
Há 60 anos, Helmut Gregor desembarcava no porto de Buenos Aires (Argentina) carregando uma maleta com seringas hipodérmicas, amostras de sangue e plaquetas de células.
Ele havia fugido de navio a partir da Itália, onde se refugiou com documentos falsos após três anos colhendo batatas em uma fazenda próxima a Gunzburgo, na Alemanha, sua terra natal.
Na Argentina peronista da década de 1950, dirigiria uma marcenaria, venderia máquinas agrícolas para os fazendeiros da região do Chaco e realizaria uma série de abortos ilegais — além de se aproximar do governo, o que lhe rendeu um passaporte alemão com seu nome verdadeiro: Josef Mengele.
A vida pós-Segunda Guerra do “anjo da morte” —como ficou conhecido o médico nazista responsável pela engenharia da raça ariana— é o mote do premiado romance baseado em fatos reais “O Desaparecimento de Josef Mengele”, escrito pelo jornalista francês Olivier Guez, publicado agora no Brasil.
O livro ganhou em 2017 o Renaudot, importante prêmio literário da França.
Em entrevista à Folha, Guez conta que seu objetivo era descobrir como foi a “segunda vida” daquele que considera o pior assassino da história.
Mengele “mandou, assobiando, 400 mil homens para a câmara de gás”, conta o narrador do livro. Os que não eram enviados para a morte serviam como cobaias para seus experimentos em busca de uma raça pura: “extrações de sangue, punções lombares, trocas de sangue entre gêmeos”.
“Ele nunca se arrependeu de nada e considerou que o que fez era seu dever como soldado da biologia alemã”, comenta o autor. “Não tinha qualquer empatia por suas vítimas, que não considerava humanos. Tinha que pensar desta forma para não entrar em colapso”, completa Guez.
A diferença deste em relação a outros livros sobre o médico de Auschwitz é sua narrativa romanceada, que o autor chama de “romance-verdade”.
A obra foi escrita com base em biografias, documentos e visitas do escritor a Argentina, Paraguai e Brasil, países onde Mengele se refugiou até morrer, em 1979, em uma praia de Bertioga, litoral de São Paulo.
“O romance era a melhor forma de contar a sua trajetória porque, em uma biografia clássica, você se perde com tantos detalhes”, afirma.
A narrativa é cheia de detalhes, de tal forma que a fluidez do texto se perde em diversos momentos, tamanha a quantidade de informações contidas em cada parágrafo.
Júlio Pimentel Pinto, professor do Departamento de História da USP, que pesquisa as relações entre história e ficção, diz que romancear um personagem “enigmático e sinistro” como Mengele gera o risco de transformá-lo em caricatura.
Por outro lado, ressalta que “a ficção pode produzir significados para além dos materiais aos quais o historiador é forçado a se limitar”. Neste caso, quem ganha é o leitor, argumenta, por poder compreender a complexidade de uma figura histórica a partir da liberdade imaginativa do autor.
Um exemplo de tal liberdade é a forma como o narrador descreve as variações de humor do fugitivo, que nunca foi preso por seus crimes.
Na primeira metade do livro, Mengele aparece esperançoso com o tratamento concedido aos nazistas refugiados na Argentina; na segunda, torna-se um homem “errante e fugitivo”, ao escapar para o Paraguai.
Para o autor, o exílio latino-americano de Mengele simboliza o fim de uma “certa ideia da Europa do iluminismo”.
“A Europa se curou do Holocausto apenas superficialmente. A destruição fez com que perdêssemos algo em nossa crença de quem somos e do que devemos fazer.”