Quarta-feira, 05 de novembro de 2025
Por Redação O Sul | 25 de dezembro de 2020
Na madrugada de 7 de fevereiro, os poderosos censores da internet da China sentiram algo desconhecido e profundamente perturbador. Sentiram que estavam perdendo o controle.
Espalhava-se rapidamente a notícia da morte por covid-19 do doutor Li Wenliang, médico que alertou para a existência de uma nova e mortífera epidemia viral e, em resposta, foi ameaçado pela polícia e acusado de espalhar boatos. As redes sociais foram tomadas pelo pesar e pela fúria. Para o público chinês e estrangeiro, a morte do Dr. Li mostrou o terrível custo do instinto do governo chinês de suprimir as informações inconvenientes.
Mas os censores da China decidiram dobrar a aposta. Alertando para o “desafio sem precedentes” que a morte de Li representava e para o “efeito borboleta” que esta poderia desencadear, as autoridades se puseram a suprimir as notícias inconvenientes e retomar o controle da narrativa, de acordo com diretrizes confidenciais enviadas a funcionários dos escritórios locais de propaganda e aos veículos jornalísticos.
Elas ordenaram aos sites de notícias que não enviassem notificações push alertando os leitores para a morte do médico. Disseram às plataformas de redes sociais que gradualmente removessem o nome dele dos tópicos mais acessados e ativaram legiões de falsos comentaristas online para inundar as redes sociais com um falatório paralelo, chamando atenção para a necessidade de discrição: “Enquanto lutam para orientar a opinião pública, os comentaristas devem ocultar sua identidade, evitar o patriotismo descarado e os elogios sarcásticos, alcançando resultados com agilidade e discrição”.
As ordens faziam parte de milhares de diretrizes secretas do governo e outros documentos analisados pelo The New York Times e pela ProPublica. Eles expõem detalhadamente o sistema que ajudou as autoridades chinesas a moldarem a opinião na internet durante a pandemia.
Em um momento em que as redes sociais aprofundam as divisões sociais nas democracias ocidentais, a China manipula o discurso online para reforçar o consenso do Partido Comunista.
Para gerenciar o conteúdo exibido na internet chinesa no começo do ano, as autoridades emitiram comandos rigorosos a respeito do conteúdo e do tom da cobertura jornalística, pagaram diretamente a trolls para que inundassem as redes sociais com comentários favoráveis ao partido e mobilizaram forças de segurança para amordaçar vozes não autorizadas.
Ainda que a China não disfarce sua crença no rigoroso controle da internet, os documentos esclarecem a dimensão dos esforços empreendidos nos bastidores para manter o controle firme. São necessários uma imensa burocracia, exércitos de pessoas, tecnologia especializada feita por empresas terceirizadas, o monitoramento constante de veículos jornalísticos digitais e plataformas de redes sociais – e, supõe-se, muito dinheiro.
É algo que vai muito além de um botão para bloquear certas ideias, imagens e notícias indesejáveis.
De acordo com os documentos, os limites da China para as informações a respeito da epidemia começaram no início de janeiro, antes mesmo de o novo coronavírus ter sido identificado de maneira definitiva. Quando a infecção começou a se espalhar rapidamente algumas semanas depois, as autoridades reprimiram tudo que mostrasse a resposta da China de maneira demasiadamente “negativa”.
Faz meses que os Estados Unidos e outros países acusam a China de tentar ocultar a dimensão do surto no seu início. Talvez nunca saibamos se uma maior liberdade no fluxo de informações na China teria evitado que esse surto se transformasse em uma calamidade de saúde global. Mas os documentos indicam que as autoridades chinesas tentaram conduzir a narrativa não apenas para evitar o pânico e desbancar falsos rumores de circulação doméstica. Elas queriam também fazer com que o vírus parecesse menos grave – e as autoridades, mais capazes – enquanto o restante do mundo assistia.
Os documentos incluem mais de 3.200 diretrizes e 1.800 memorandos e outros arquivos saídos do órgão regulador da internet no país, a Administração Cibernética da China (CAC), na cidade de Hangzhou, no Leste do país. Eles também incluem arquivos internos e programas de computador de uma empresa chinesa, Urun Big Data Services, que desenvolve o software usado pelos governos locais para monitorar os debates na internet e gerenciar exércitos de comentaristas online.
Os documentos foram compartilhados com o Times e a ProPublica por um grupo de hackers que se identifica como CCP Unmasked [PCC desmascarado], referindo-se ao Partido Comunista da China. O Times e a ProPublica verificaram independentemente a autenticidade de muitos dos documentos, alguns dos quais foram obtidos em separado pelo China Digital Times, um site que acompanha o controle chinês da internet.