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Edson Bündchen Muito tarde para arrependimentos

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“Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do tempo a fabricar mortalhas”, proclamava o genial Mário Quintana, ao ponderar sobre o vagaroso escorrer das horas a nos matar lentamente. Há vários modos de morrer. Hoje, a pandemia nos traz uma de suas mais sombrias formas: a morte distante, fria, longe dos entes queridos. São pungentes os depoimentos colhidos pelos médicos que atendem pacientes internados em UTIs, vítimas da Covid-19. Na hora da morte, afloram reflexões que dificilmente teriam outro palco tão implacavelmente mórbido. Entre as queixas mais comuns, estão arrependimentos de uma vida não vivida, escolhas mal feitas e equívocos irreparáveis. A australiana Bronnie Ware é uma enfermeira que passou muitos anos trabalhando com pacientes que estavam morrendo. Em 2012, ela escreveu um livro intitulado “Antes de partir: Os 5 principais arrependimentos que as pessoas têm antes de morrer”. Sublimar, evitar a questão, ou até mesmo negar a morte, tem sido tentativas racionais para fugir de um tema tão humanamente inevitável. Contudo, como jamais visto em tempos recentes, o número de mortos que a pandemia tem provocado irremediavelmente nos defronta com o assunto. Falar sobre a morte é preciso, até como contraponto à percepção valorativa da nossa própria existência.

A modernidade nos legou um conjunto de costumes e valores nos quais a morte foi sendo desnaturalizada. O ato de morrer está cada vez mais asséptico, em leitos hospitalares, onde a impessoalidade prepondera, bem diferente da morte assistida por familiares, comum até o início do século XIX. Por outro lado, avanços institucionais nos livraram das mortes espetaculosas, com plateias vibrando ao som horrendo da guilhotina, ou do ruído medonho do alçapão nos enforcamentos públicos. Glória e tragédia, ao modo das mortes de um Robespierre, um Marat, ou um Tiradentes, também ficaram para trás. Não precisamos, todavia, reviver um passado sinistro para que floresçam histórias de vida edificantes, que possam inspirar terceiros ou, mais modestamente, acalentar o nosso próprio espírito.

De acordo com Bronnie Ware, as pessoas, no leito da morte, gostariam de ter tido o desprendimento de viver uma vida fiel a si mesmas, e não a vida que os outros esperavam delas; também gostariam de não ter trabalhado tanto, queriam ter tido mais coragem para expressar seus sentimentos, mantido mais contatos com os amigos e, finalmente, terem vivido uma vida feliz. Esses cinco arrependimentos nos remetem à questão da vida como um fio condutor incontornável para uma boa morte. Viver plenamente, nessa perspectiva, seria o melhor modo de poder olhar para trás e dizer que a jornada valeu a pena.

Muitos experimentam, paradoxalmente, o desgosto de vidas vazias em contraste com a “indústria da felicidade”, que massivamente estimula às pessoas a consumir, cuja lógica, ancorada na posse frenética de bens materiais, redundaria numa vida mais feliz. A considerar os depoimentos dos pacientes terminais, a fórmula atual não vem tendo sucesso. Não é o dinheiro, tampouco o consumo desenfreado, que torna as pessoas mais felizes. Nesse contexto, há um inextrincável elo entre uma vida bem-aventurada e um desfecho que valide todo esse esforço. O balanço da vida, cedo ou tarde, fará essa confrontação entre aquilo que almejamos ser com o que efetivamente realizamos.

Se a realidade, como observou Schopenhauer, “é criada pelo ato de querer”, podemos tornar nossa trajetória mais significativa, a partir de uma nova consciência. É tempo de um existir mais autêntico, com trabalhos recompensadores, ócios criativos, amigos mais próximos e coragem para expressar os sentimentos. Nosso maior medo não deveria ser a morte, mas viver uma vida sem sentido, sem propósito, sem o olhar generoso para com o outro, sem compassividade, sem paixão. Se a morte é inescapável, em contraste é livre o arbítrio para que as nossas escolhas não nos condenem a uma vida de arrependimentos.

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https://www.osul.com.br/muito-tarde-para-arrependimentos/ Muito tarde para arrependimentos 2021-01-07
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