Terça-feira, 06 de maio de 2025
Por Edson Bündchen | 5 de março de 2020
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Ao se deparar com os horrores da segunda Grande Guerra, Hannah Arendt se perguntava que tipo de monstro poderia engendrar e perpetrar tamanhas barbaridades. Que sentido moral estava em jogo? De que forma alguém poderia colocar em ação um genocídio cuidadosamente programado e que levou à morte milhões de seres humanos?
Quando se debruçou sobre o caso do oficial alemão Adolf Eichmann, responsável pelo envio de judeus aos campos de concentração, Arendt se confrontou com uma constatação terrível e perturbadora: Eichmann era um homem comum, sem traços aparentes que o identificassem com um ser maligno e com uma personalidade psicopata. Ao contrário, o que se viu era um homem sem brilho ou inteligência superior, um burocrata como outro qualquer, mas que se via como alguém que simplesmente cumpria ordens, incapaz de sentir-se protagonista e muito menos responsável pelo mal que cometia. A isso Arendt chamou de “banalidade do mal”, fenômeno no qual o indivíduo torna-se incapaz de julgamentos morais por fazer parte de uma multidão, ou ligado a alguém superior que lhe dá ordens, e essa cobertura invisível lhe confere isenção de culpa por total falta de autocrítica. Nesse estágio, o comportamento individual é anulado e a consciência moral aquietada pode engendrar crimes terríveis, sem que isso lhe custe sequer uma noite mal dormida.
A expressão “banalidade do mal” cunhada por Hannah Arendt, gerou muita polêmica. O consagrado pensador Peter Drucker, por exemplo, discordava de Arendt. Para Drucker, o mal nunca é banal, os homens é que são triviais. Nessa linha, o pensador austríaco estava empoderando e responsabilizando totalmente o indivíduo por suas escolhas. Não havia, portanto, na visão de Drucker, justificativa plausível para os desvios cometidos a pretexto do cumprimento de ordens superiores. Não há como eximir de culpa o sujeito que pratica ou deixa de denunciar um crime. O mal se alimenta justamente dessa tentativa permanente de esquiva moral, de terceirização da culpa e da responsabilidade.
A consciência do mal é crucial em momentos de tensão social. Nessas horas, instituições sólidas são fundamentais. Depender do sentimento primal dos indivíduos pode colocar em risco os pilares que sustentam a sociedade e um desses fundamentos é o fiel cumprimento da Lei. Sem um arcabouço legal bem estruturado, ficamos à mercê dos caprichos ou idiossincrasias pessoais, com perigo sistêmico para toda a sociedade, a exemplo da terrível experiência nazi-fascista. Sem ordem, portanto, o fenômeno desnudado por Hannah Arendt pode aflorar, muitas vezes de origens improváveis, mas capazes de catalisar sentimentos reprimidos e em busca de vazão. Isso pode ser muito perigoso e desestabilizador.
O homem levou séculos para criar a atual figura do Estado de Direito, uma construção social portanto. Apostar no fortalecimento da democracia, do diálogo, da transparência e do senso de justiça são ações que criam barreiras à violência, à injustiça, à iniquidade e à barbárie. Fora do Estado de Direito não há solução. Por isso, é vital vigiar de forma constante os pilares fundamentais que moldam a sociedade, pois, no estado natural como preconizava Hobbes, o homem vira lobo do homem e sob o manto da banalidade do mal a violência pode não encontrar barreiras legais ou morais suficientes.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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