Quarta-feira, 15 de maio de 2024
Por Redação O Sul | 29 de março de 2024
Em entrevista à DeutscheWelle (DW), o quadrinista franco-brasileiro Matthias Lehmann conta como foi a pesquisa para produzir “Chumbo”, obra que aborda a ditadura militar brasileira por meio da história de uma família mineira. O Brasil sempre esteve no coração do francês Matthias Lehmann. E na língua – o português foi sua primeira língua. Filho de mãe brasileira e pai francês, ele cresceu ouvindo memórias do país e, quase todos os anos, visitando parentes em Minas Gerais.
Mais tarde, passou a querer entender a história brasileira – e, claro, os horrores da ditadura, inaugurada com o golpe que completa 60 anos, passou a fazer parte da sua consciência. Desde que se tornou ilustrador, quadrinista e pintor, planejava produzir algo sobre o assunto. “Eu sempre tive esse sentimento de que precisava fazer algo importante sobre o Brasil para, de certo modo, compensar o fato de não ter crescido no país”, diz.
Em agosto do ano passado, ele lançou na França e originalmente em francês a HQ Chumbo, que conta a história de uma família mineira, ambientada no contexto da ditadura. Neste mês, o livro chega às livrarias brasileiras, em versão traduzida para o português. Lehmann conta que a obra “surpreendeu muitos leitores” franceses. “Aqui poucos sabem o que foi a ditadura, sua violência e sua extrema longevidade”, comenta.
Consciente do atual momento mundial, em que ânimos políticos estão polarizados, ele entende o livro como parte de “um movimento geral de vigilância frente a esta onda reacionária” e pontua que a polarização no Brasil “se acentuou ainda mais durante a era Bolsonaro”. “Na França, estamos a redescobrir tudo isto, depois de décadas de batalhas políticas relativamente respeitosas”, ressalta.
Lehmann é sobrinho do escritor e jornalista brasileiro Roberto Drummond (1933-2002), autor de Hilda Furacão, entre outros livros.
1) Em primeiro lugar, gostaria de saber um pouco sobre sua relação com o Brasil. Você sempre sentiu alguma identificação com o país?
Bom, minha mãe sendo brasileira, tomei consciência dessa herança de modo muito rápido. Além disso, meu pai, que é francês, morou no Brasil por um tempo antes de conhecê-la, então ele também falava português. Por isso, quando eu era pequeno [esta] foi minha primeira língua.
Cheguei à escola francesa e falei em português com a professora, que não entendia nada. Depois aprendi… A gente visitava os familiares em BH [Belo Horizonte, capital de Minas Gerais] todos os anos. Foi muito importante para minha mãe. Ela tinha muita saudade, então queria transmitir esse sentimento de pertencimento ao Brasil para minhas irmãs e para mim.
2) Falando sobre o livro, como foi o processo de pesquisa, principalmente para o pano de fundo histórico?
Lendo muita coisa. Principalmente ensaios históricos. Um livro sempre abre o caminho para outro livro e assim, em geral, a lista de leitura só vai crescendo e rapidamente se torna faraônica. Felizmente, digo entre aspas, não tive tempo de ler tudo e aí tive que fazer escolhas.
É óbvio que você não pode colocar tudo em uma história de ficção. O objetivo era, acima de tudo, ter uma base histórica bastante sólida, mas obviamente não sou historiador.
Vários trabalhos foram muito marcantes para mim nesse processo de pesquisa. [Li obras da historiadora] Heloisa Starling, [do jornalista] Elio Gaspari, [do também jornalista] Rubens Valente e [do escritor, cronista e jornalista] Humberto Werneck.
E também documentos, tipo o relatório da Comissão Nacional da Verdade em Minas […]. Também pesquisei muitas coisas mais visuais, entre fotos, design gráfico, arquitetura… Isso foi bastante importante.
3) Na obra, você aborda o integralismo e, de forma central, a ditadura militar brasileira. Em tempos de ascensão de extremismos de direita, esta temática se torna mais necessária?
Em relação ao Brasil, eu queria muito falar sobre os mecanismos da ditadura e do golpe de Estado, e as repercussões de tudo isso no núcleo familiar. Esse fenômeno de polarização é muito forte no Brasil há muito tempo e se acentuou ainda mais durante a era Bolsonaro.
Na França, estamos a redescobrir tudo isto, depois de décadas de batalhas políticas relativamente respeitosas entre os diferentes partidos, enquanto a extrema direita permanecia demonizada.
Mas as coisas mudaram muito. Agora, a direita tradicional, inclusive o partido do [presidente francês Emmanuel] Macron, integrou ideias e parte do programa da extrema direta. Chumbo participa de um movimento geral de vigilância frente a esta onda reacionária. Mas, obviamente, é preciso que a sociedade civil reaja na sua globalidade diante desse fenômeno. A respeito disso, no momento, estou mais otimista com o Brasil do que com a França.