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Amilcar Macedo Da tolerância religiosa à liberdade de expressão: o legado que não podemos esquecer

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John Stuart Mill saiu da esfera religiosa e colocou no centro do debate a liberdade de expressão como valor universal.

Foto: Reprodução

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

Por séculos, a Europa mergulhou em perseguições, fogueiras e guerras motivadas por diferenças de fé. Foi preciso muito mais do que tratados de paz para abrir caminho a algo que hoje nos parece tão natural: a liberdade de acreditar — ou não acreditar — e, mais tarde, a liberdade de dizer o que se pensa. Essa virada de chave na forma de entender a relação entre o indivíduo, o Estado e a sociedade tem três nomes que atravessam gerações: John Locke, Voltaire e John Stuart Mill.

Locke, em plena Revolução Gloriosa na Inglaterra do século XVII, ousou escrever a “Carta sobre a Tolerância” (1689). Num país dilacerado por disputas religiosas, ele defendeu algo impensável para muitos de seus contemporâneos: o Estado não tinha autoridade para decidir qual fé cada pessoa deveria seguir. A crença, argumentava, nasce de dentro — não pode ser decretada. Ao governo caberia garantir a vida, a liberdade e a propriedade; a salvação da alma, essa era tarefa das igrejas, mantidas por fiéis que ali estivessem por escolha. Ainda assim, Locke não foi tão longe: excluiu católicos, ateus e quem ameaçasse a ordem pública de sua defesa de tolerância. Um passo importante, mas ainda restrito.

Um século depois, Voltaire pegou essa tocha e a carregou adiante. Em 1763, publicou o “Tratado sobre a Tolerância”, revoltado com o caso do protestante Jean Calas, executado em Toulouse apenas por sua fé. Voltaire não teve dúvidas: fez da sua pena uma arma contra o fanatismo religioso e o abuso de poder. Para ele, tolerar não era questão de conveniência, mas de justiça e humanidade. Em outras palavras, era uma exigência moral. Qualquer religião — ou ausência dela — deveria existir livremente, sem a sombra da perseguição.
No século XIX, foi a vez de John Stuart Mill ampliar ainda mais esse horizonte. Em “Sobre a Liberdade” (1859), Mill saiu da esfera religiosa e colocou no centro do debate a liberdade de expressão como valor universal. Sua ideia era simples e poderosa: a única razão legítima para limitar a liberdade de alguém é evitar dano real a outra pessoa — o famoso ‘princípio do dano’. Fora isso, toda opinião, por mais absurda ou incômoda que fosse, deveria ter vez. Mill acreditava que é justamente no embate de ideias que se encontra a verdade e se faz a sociedade avançar.

O percurso que vai de Locke a Mill conta a história de como a tolerância e a liberdade saíram do campo das utopias e se tornaram pilares do pensamento liberal moderno. Locke abriu as portas para a liberdade de consciência, Voltaire ampliou o alcance com sua indignação moral contra o fanatismo, e Mill coroou tudo isso defendendo o debate livre como motor da democracia.

Mas, olhando para o Brasil de hoje, essa conquista histórica parece, em alguns momentos, em xeque. Embora a Constituição de 1988 seja clara ao garantir a liberdade de expressão e proibir qualquer forma de censura prévia, o que se vê são decisões do Judiciário que caminham na direção contrária: perfis em redes sociais bloqueados, conteúdos críticos removidos, investigações abertas contra opiniões incômodas. Justifica-se tudo em conceitos vagos — “discurso de ódio”, “desinformação”, “ataques à democracia” — muitas vezes interpretados de forma subjetiva, sem o respaldo direto de leis claras, como alertava Konrad Hesse.

É óbvio que proteger a democracia e combater abusos são preocupações legítimas — ninguém quer um ambiente tomado por calúnias ou ameaças. Mas a história mostra que o remédio para o discurso tóxico não é a mordaça. Quando o Judiciário vira censor, ainda que por boas intenções, corre o risco de enfraquecer a própria base democrática. Locke, Voltaire e Mill nos ensinaram que é justamente no terreno das ideias livres — muitas vezes incômodas, contraditórias ou até absurdas — que a sociedade se fortalece. Silenciar, por outro lado, abre espaço para arbitrariedades.

A liberdade de expressão, assim como a de crença, não se defende apenas quando concordamos com o que é dito. Defende-se, sobretudo, quando discordamos — e ainda assim aceitamos que o outro tenha o direito de falar. Esse é o ponto que sustenta qualquer democracia viva. Se esquecermos disso, corremos o risco de, em nome de proteger a democracia, acabar sufocando aquilo que ela tem de mais valioso: o direito de pensar, questionar e discordar.

Amílcar Fagundes Freitas Macedo
Magistrado – Ex-Presidente do TJM

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

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