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Edson Bündchen Mitos de papel

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A luta pela sobrevivência sempre representou, para a grande maioria, uma corrida de obstáculos, em velocidade e complexidade crescentes. Entretanto, com a chegada da era do conhecimento, não bastava mais correr, era preciso correr mais do que os outros, fenômeno captado pela frase perturbadora do ex-piloto de Fórmula 1, Mario Andretti: “Se o seu nariz não estiver sangrando, é porque você não está na velocidade adequada”. A confluência entre o hiperindividualismo, marca deste milênio, e a ascensão meteórica da revolução tecnológica e seu corolário de aceleração do tempo, legaram a todos nós um desamparo cujos reflexos não encontram limites somente no inferno existencial de cada um, mas avançam para o comprometimento do bem comum, ao incitar a intolerância e a indiferença como mecanismos perversos paridos nesse caldo ressentido. Nas palavras de Lewis Carroll, para permanecer no mesmo lugar, estamos tendo que correr duas vezes mais rápido, redundando na sociedade neurótica, autocentrada e solitária, que paradoxalmente nos impõe o desafio do diálogo, quando ninguém mais quer ouvir. Esse quadro tem forjado apelos crescentes a soluções mágicas, resgatando a crença em mitos, como forma de dar vazão ao descrédito nas lideranças constituídas. Há pressa, há urgência, e essa impaciência tem se revelado o ambiente perfeito para a proliferação de falsos profetas, muitos deles sustentados por narrativas que intentam o resgate de uma época mais previsível e segura, com o uso de retórica saudosista e grandiloquente.

Na mitologia grega, os mitos davam guarida à necessidade humana primordial de compreensão do mundo. Advindo de alguém cuja autoridade não era possível negar, o apelo mitológico ainda reverbera, quase trinta séculos depois, em algumas mentes que recusam uma explicação racional para os fenômenos que regem o mundo. Essa visão limitada, incongruente e contraditória, a par de revelar rigidez intelectual, repercute socialmente, ao influenciar escolhas políticas e imaginar que “salvadores da pátria” sejam capazes de redimir parte desse desassossego e inquietudes legadas pela modernidade. Ao contrário disso, é sabido que a construção de uma comunidade mais justa e que acolha as angústias de indivíduos cada vez mais inseguros e ansiosos, vai depender de uma sociedade mais autônoma, e essa tarefa deve ser comunitariamente edificada, não mais a partir de crenças infundadas, mas na valorização da solidariedade enquanto instrumento capaz de acolher os preceitos éticos fundamentais da convivência humana.

O naufrágio das ilusões e o encontro do indivíduo com uma realidade que lhe oferece promessas ao troco de recompensas que talvez nunca cheguem, produz um impacto agudo na autoestima das pessoas. A competição desenfreada, muito bem encapsulada na noção de meritocracia, tem servido bem mais aos interesses já estabelecidos, e a atual concentração de renda no planeta está a confirmar a tendência, do que da emancipação pessoal e o fortalecimento da cidadania. Sem essa compreensão e abertura de espaço para o tratamento de ressentimentos cada vez maiores, a noção de pertencimento a um todo, seja ele um espaço cívico ou comunitário, enfraquece. Indivíduos fragilizados tendem a buscar tábuas de salvação, muitas já carcomidas, senão em ainda maior medida, objetos de conformação à realidade plasmada, a exemplo de uma existência às sombras, numa reedição trágica da “Alegoria da Caverna”. A luta entre o saber e a mera crença continua. Apostar nas luzes nunca foi uma missão qualquer. O elo entre a nossa realidade, nossas convicções e valores é a política. Esperar um governo de sábios é tão insensato quanto imaginar que teremos indivíduos, cidadãos e eleitores plenamente emancipados intelectual e socialmente. Talvez, como prega Bauman, seja preciso antes recoletivizar as utopias privatizadas em prol das visões de uma sociedade melhor e mais justa, numa repactuação imediata entre a razão e o indivíduo, a fim de não reeditar o passado com mitos de papel.

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https://www.osul.com.br/mitos-de-papel/ Mitos de papel 2021-05-27
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