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Edson Bündchen Os ressentidos do novo milênio

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A noção de viver em comunidade é uma das características mais marcantes e importantes para o sucesso da espécie humana. Nossa trajetória certamente não estaria sendo hoje contada, caso não cooperássemos, seja em bandos, na savana africana nos primórdios da civilização, seja na construção social da coexistência moderna, na qual desenvolvemos um complexo acordo legal que permite um frágil equilíbrio que nos livrou, muitas vezes precariamente, da barbárie, e permitiu o fenômeno da convivência de bilhões de seres humanos em relativa paz. Viver comunitariamente, porém, nunca foi exatamente uma tarefa fácil, e a revolução cibernética tratou de tornar o processo ainda mais agudamente desafiador. O esgotamento das grandes utopias emancipadoras, que prometiam uma sociedade idealizada e mais justa, promoveu um vazio difícil de preencher, e o individualismo exacerbado tem sido uma resposta insuficiente para acomodar todas as inquietações desse mundo em ebulição. A solidariedade, que poderia ser o amálgama que construiria as pontes para uma sociedade mais igualitária, sofre o ataque frontal da intolerância, que cresce como resposta a uma perspectiva sombria em relação ao futuro. Ser solidário e cooperativo, num mundo pouco disposto ao diálogo, parece ser um esforço válido, mas compete diretamente com a alienação e o sectarismo que atualmente corroem a noção do bem comum, essencial para qualquer projeto viável de vida coletiva.

A pandemia, a par de ser uma tragédia humanitária, tem explicitado com notável clareza alguns pressupostos colaborativos que conseguiram frear o ímpeto do vírus por intermédio de coesão social, disciplina e empatia, virtudes traduzidas em menos mortes e menos prejuízos econômicos. São eloquentes os exemplos verificados em países tão diferentes como China, Coreia do Sul, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Israel e tantos outros, o que afasta a tentação de tributar o êxito das ações de isolamento a regimes de força, caso mais emblemático da China. Há, na verdade, algo além do que somente imaginar que as pessoas obedecem a ordens. Percebe-se, junto ao respeito às autoridades, também consideração ao bem comum, e uma noção de que se é parte de um todo, e que esse todo depende de cooperação para operar em harmonia.

A cooperação, a propósito, é um conceito fundamental que parece não vem ocorrendo com a mesma intensidade em importantes países ocidentais, onde talvez o exemplo mais eloquente sejam os EUA, país no qual a aposta na lógica meritocrática tem consolidado a crença de que com trabalho árduo e talento qualquer pessoa pode ascender na vida, contudo ao preço de visões menos solidárias. A realidade tem demonstrado que a aposta na meritocracia, adornada por inegáveis virtudes, tem gerado uma legião de ressentidos, conforme afirma o filósofo americano Michael Sandel, para quem vivemos num mundo cuja competição extremada separa “ganhadores de perdedores”, encobertos pelo lema empreendedor “de quem quer sempre alcança”. A falha em prover essa promessa de mobilidade social baseada no mérito tem criado uma onda coletiva de frustração, polarização e descrença nos governos.

Além de provocativa, a visão de Sandel nos remete à raiz da maior ou menor presença de senso comunitário nas diversas sociedades, reflexão não apenas moral, mas extremamente pragmática, considerando o desafio imposto pela Covid-19. Se, até o início deste século, a aposta na proeminência do indivíduo e a crença de que tudo seria possível, contanto que houvesse vontade e trabalho duro, serviu aos fundamentos capitalistas, falhou entretanto na promessa de mobilidade social baseada no mérito, e colocou na conta dos governos um olhar mais inclusivo e responsável. O senso comunitário e as noções do bem comum dependem do cultivo simultâneo e permanente de atributos de maior solidariedade e humildade, sem os quais o fardo do mundo será demasiado assoberbante para caber nos ombros de uma única alma, envenenando ainda mais uma sociedade já ressentida.

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