Terça-feira, 24 de junho de 2025
Por Redação O Sul | 29 de dezembro de 2016
O primeiro é o bilionário narcisista, sem nenhuma experiência de governo. Incapaz de separar interesse privado do público, de desligar-se para valer de seus negócios ou mesmo de divulgar sua declaração de imposto de renda. Cercado de familiares e bajuladores para montar o gabinete, apoiado por racistas e xenófobos, adepto do Twitter para distribuir bofetadas virtuais aos desafetos.
Mais preocupado com a crítica da Vanity Fair a seu restaurante ou com o Trump hilário de Alec Baldwin no Saturday NIght Live que com questões de Estado e gafes diplomáticas, como a influência de hackers russos na eleição ou o telefonema inadequado à presidente de Taiwan. Este Trump é uma espécie de Berlusconi de cabelo cor-de-laranja, um Hugo Chávez adulado por neonazistas, um populista que saiu às pressas de um cassino falido em Atlantic City para cair de para-quedas na Casa Branca.
O segundo Trump é um republicano nacionalista, que pretende reerguer o moral do país não apenas com frases de efeito, mas por meio de um gabinete escolhido a dedo para cumprir o programa para o qual foi eleito. O linha-dura que quer rever acordos comerciais, fechar fronteiras e redesenhar o papel dos Estados Unidos na economia e na geopolítica. O empreendedor que não dá bola aos empecilhos criados por minorias ou por opiniões tidas como “politicamente corretas”.
O outsider quer romper o pacto de mediocridade que vigora em Washington e, por isso mesmo, em vez de montar seu gabinete com acadêmicos ou nomes com experiência e conhecimento, preferiu escolher ex-generais, executivos de grandes empresas, banqueiros de Wall Street e outros forasteiros, dotados de pouca ou nenhuma ligação com o mainstream político nas respectivas áreas. Este Trump, cruzamento de Andrew Jackson com Ronald Reagan, veio para tirar Washington da zona de conforto e subverter a política estabelecida.
Quem será o verdadeiro Donald Trump? O lunático aventureiro que dará início à era de decadência no poderio americano – ou o visionário cuja terapia de choque é a única receita capaz de tornar a “América grande novamente”? A única resposta possível, a esta altura, está nas suas escolhas para o gabinete e no programa de governo. É uma resposta que traz mais motivo para preocupação do que para celebração. O governo Trump promete decepcionar até seus defensores aguerridos.
Há dois motivos centrais para isso. O primeiro é interno. A política econômica de Trump simplesmente não para de pé. A noção nacionalista de que fechar fronteiras e proteger mercados serve para gerar empregos e crescimento é apenas uma quimera. Tudo o que o fechamento econômico faz é derrubar a produtividade – e isso deprime o crescimento. Conhecemos bem essa ladainha no Brasil. Se o governo Trump pretende mesmo impor uma “nova matriz econômica”, a chance de isso dar certo é rigorosamente nenhuma.
O governo Obama resgatou o país da pior crise da história recente, gerou 14 milhões de empregos e negociou acordos comerciais que, mesmo imperfeitos, são vantajosos como um todo. Os economistas escolhidos pela equipe de Trump para gerir o Departamento de Comércio acreditam em combater o déficit comercial, uma noção estapafúrdia. Quando ficar claro que esse tipo de política destroi empregos, os primeiros a se rebelar serão aqueles que acreditaram no populismo protecionista.
No campo interno, também não ajuda a escolha de um negacionista das mudanças climáticas para a Agência de Proteção Ambiental. Nem, para o Departamento de Energia, de um político que propôs, quando pré-candidato, acabar com esse mesmo departamento. Ou de neófitos para as áreas de educação, saúde e habitação. Tudo isso pode gerar uma força de arrasto negativa – ou, com certo otimismo, algum ruído e choques positivos. Sempre haverá, na vastidão do Estado americano, burocratas competentes capazes de impedir que o pior aconteça.
O maior motivo para preocupação com o governo Trump está no front externo. Trump parece absolutamente ignorante do monstro que desperta na geopolítica global com seu narcisismo chauvinista. Se o flerte com Vladimir Putin, fortalecido pela escolha do novo secretário de Estado, enfraquecer a Otan e impuser fissuras numa União Europeia já ferida pelo Brexit, o mundo pagará caro.
Putin pode até acreditar que bastará Trump fazer vista grossa para a Rússia anexar Ucrânia e países bálticos. Mas França, Alemanha e Inglaterra não acharão o mesmo. No mundo anterior à aliança atlântica, tais tensões eram resolvidas com guerras sangrentas entre nações europeias. Voltaremos a esse tempo? O risco é real.
Risco ainda maior para os Estados Unidos está na Ásia, em especial na China. A negociação pela abertura de novos mercados tem natureza distinta dos acordos imobiliários a que Trump está acostumado. É um jogo com outras regras. Se abrir mão do protagonismo americano, o governo Trump poderá marcar o início do predomínio chinês no planeta.
Com seu telefonema à presidente de Taiwan, Trump lançou à lata do lixo mais de 40 anos de diplomacia, construídos pacientemente de Richard Nixon a Barack Obama. A ruptura do Tratado da Parceria Transpacífica, como parte de sua política econômica populista, deixará a China como potência soberana no âmbito asiático.
O recuo americano abre portas à China não só na Ásia. Será inevitável ampliação da influência geopolítica chinesa também na Oceania, na África e, via Pacífico, na América Latina. O primeiro desafio chinês será lidar com a proliferação nuclear, inevitável se Japão e Coreia do Sul forem abandonados pelos americanos à própria sorte.
No Oriente Médio, o cenário promete ser ainda mais dramático. Com Trump no papel do Grande Satã, a retórica hedionda do Estado Islâmico ampliará seu alcance no recrutamento de novos terroristas. Se aderir à política russa para a Síria, Trump conquistará inimigos que hoje não tem. Em Israel, sua adesão incondicional à política demagógica do premiê Bibi Netanyahu, simbolizada pela escolha patética do novo embaixador, soterra qualquer esperança de paz e amplia o poder dos radicais islâmicos entre os palestinos.
Há, por fim, as dúzias de conflitos de interesse em torno dos negócios do próprio Trump, espalhados por centenas de países. Confundir a agenda de suas empresas com a americana poderá ser fatal. Se decidir dar uma de Berlusconi, Trump descobrirá que os Estados Unidos não são a Itália. Dispõem de imprensa livre e instituições robustas. Já houve um impeachment no século XIX e, mais recentemente, só não houve outro porque NIxon renunciou.
Mas, claro, tudo isso é especulação. Enquanto Trump não toma posse, persiste a incerteza. A partir do instante em que começar a tomar as primeiras decisões no governo, tal incerteza se transformará em risco – e aparecerá em todos os preços de mercado. Aí não será mais tão difícil descobrir qual dos dois Trumps é o verdadeiro, qual é uma criação de marketing, reproduzida irrefletidamente pela imprensa. (AG)