Quarta-feira, 30 de julho de 2025
Por Redação O Sul | 29 de julho de 2025
Um diálogo ajuda a entender por que a protagonista de “April”, uma médica obstetra de Tbilisi, a capital da Geórgia, arrisca a sua reputação fazendo abortos ilegais na zona rural. E sem cobrar pelo procedimento — realizado, muitas vezes, na mesa da sala da paciente. “Como poderia negar isso às mulheres? Alguém precisa fazer o que ninguém quer”, afirma Nina.
“Mas por que você não deixa essa tarefa para as enfermeiras, que costumam ganhar dinheiro extra com os abortos?”, pergunta outro médico, lembrando que a colega pode ser apanhada em ação e ter o registro profissional cassado. “Se algo der errado nas mãos de uma enfermeira, quem vai salvar a paciente?”, responde a médica.
Interpretada pela atriz Ia Sukhitashvili, Nina criou para si mesma essa dicotomia diária. No hospital na capital, sua missão é trazer crianças ao mundo, o que já soma “milhares de bebês” ao longo da carreira. O que poucos sabem é que Nina mantém uma atividade extracurricular clandestina, pela qual ninguém precisa pagar por seus serviços.
No interior do país, ex-república da União Soviética, a médica interrompe gestações indesejadas de mulheres sem acesso a métodos contraceptivos ou vítimas de estupros. Embora a legislação georgiana permita o aborto, desde que realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez, alguns fatores impedem que as mulheres procurem os hospitais na capital, como estigma social, pressão religiosa e mesmo falta de recursos.
Pela contundência com que questiona a condição feminina em uma sociedade patriarcal e de tradição cristã ortodoxa, “April” levou o Prêmio Especial do Júri do último Festival de Veneza. Com lançamento no Brasil no dia 1º de agosto, diretamente na plataforma Mubi, o título é o segundo longa-metragem de Dea Kulumbegashvili, de 39 anos. A cineasta e roteirista foi criada na cidade georgiana de Lagodekhi, na base da cordilheira do Cáucaso, onde “April” foi parcialmente rodado.
“Eu cresci nessa região, acompanhando a minha avó, que era educadora, batendo de porta em porta nos vilarejos. Ela ensinava as mulheres a lerem e a escreverem”, conta a diretora, em Veneza, durante encontro com jornalistas. Lagodekhi também serviu de locação para o seu primeiro longa, “Beginning” (2020), um drama sobre a crise existencial de uma jovem georgiana que abriu mão dos próprios sonhos para se tornar esposa do líder de uma comunidade de Testemunhas de Jeová.
A ideia central para “April” nasceu durante a escolha do elenco do primeiro filme, sobretudo quando Kulumbegashvili selecionava meninos e meninas para os papéis mirins. “Como as crianças sempre vinham com suas mães, de tanto conversar com essas mulheres, gradualmente eu me vi pensando na personagem de um filme. Daí veio Nina, essa profissional que vai de casa em casa visitando as mulheres que precisam de sua ajuda.”
A trama de “April” foi baseada nas histórias “dolorosas” que Kulumbegashvili ouviu nesse período. Uma das pacientes de Nina, por exemplo, é uma jovem surda e muda. Como ela não consegue contar à médica como engravidou, fica a dúvida se foi um caso de estupro ou até mesmo de incesto — a mãe da garota garante que ela não sai de casa. O aborto é feito depois que a mãe implora, alegando que, se a filha tivesse o bebê, toda a família precisaria deixar o local para não passar “vergonha”.
E o aborto induzido, um procedimento rápido, que leva geralmente de 5 a 10 minutos, é encenado em tempo real. Com a paciente deitada na mesa, são 8 minutos de câmera parada, posicionada na altura de suas coxas e de sua barriga, que são vistas de lado.
Ainda que Kulumbegashvili registre apenas os micromovimentos dessas partes da paciente, enquanto a médica realiza o que parece ser uma curetagem, a cena é angustiante. O sangue só é mostrado na mesa e nas partes íntimas da paciente quando ela se levanta.
Gráficas mesmo são as sequências de parto normal e de cesariana, realizados em uma sala de cirurgia de hospital. Logo nos primeiros minutos de filme, a câmera já registra o parto normal, para inserir o espectador no universo de Nina. Como o bebê nasce morto, o pai da criança acusa a médica de negligência, ainda que ela explique que a mãe não fez o pré-natal necessário e ainda se recusou a fazer a cesariana, quando a cirurgia foi aconselhada. As informações são do jornal Valor Econômico.