Terça-feira, 08 de julho de 2025
Por Redação O Sul | 9 de março de 2022
A invasão russa na Ucrânia deixou claro que conflitos geopolíticos no século 21 têm novas faces. No front financeiro, o Ocidente mostrou contar com armamento poderoso. As sanções anunciadas até agora isolaram a economia russa de uma maneira que poucos achavam possível, incluindo os mercados. Mas também expuseram desequilíbrios de um sistema financeiro internacional quase que totalmente controlado por um punhado de nações. Afinal, quem manda nas transações financeiras globais são países do Ocidente e suas moedas (sobretudo o dólar), ainda que hoje representem cerca de metade da economia mundial apenas.
A possibilidade de se tirar a 11ª economia do mundo do mapa financeiro fez com que outras nações atentassem para seu grau de dependência de um sistema sobre o qual não têm controle. O congelamento de parte das reservas internacionais do banco central de um país pode, “de uma hora para a outra, tornar um agente superavitário deficitário”, como ressaltou o estrategista do Crédit Suisse, Zoltan Pozsar, um dos gurus do mercado, em relatório a investidores semana passada. De que adianta ter US$ 300 bilhões em reservas no exterior, se esse dinheiro não pode ser usado? Isso assusta, como economistas têm chamado a atenção nos últimos dias, e mostra que este é um arsenal que pode ter limites.
Pode, por exemplo, levar nações que não se considerem alinhadas ao Ocidente a rever a sua participação no modelo atual – nascido no final da Segunda Guerra Mundial, quando a configuração geopolítica internacional era outra. “Nunca vi o uso do dinheiro como arma nesta escala. Mas esta é uma carta que só se pode usar uma vez. A China vai se concentrar em não precisar do dólar antes de ir para cima de Taiwan. É uma reviravolta na história monetária: o fim da hegemonia do dólar e a aceleração para uma ordem monetária bipolar”, disse o economista Dylan Grice, do Calderwood Capital, no Twitter, em 27 de fevereiro.
Nesse contexto, o ouro poderia voltar a ser, como antigamente, porto ainda mais seguro, uma espécie de dinheiro debaixo do colchão para quem não quer depender da moeda americana. Pozsar aponta o ouro como uma das alternativas para que o acúmulo de superávits “longe dos centros financeiros do Ocidente semeando novos centros financeiros no Leste”.
A discussão parece ser técnica, mas começa a ter grandes contornos políticos. O debate sobre o formato do sistema financeiro global e suas assimetrias não é propriamente novo. Mas a guerra na Ucrânia pode ter levado a um ponto de ebulição um tema que vinha sendo mantido em banho-maria há anos. Já há quem defenda um novo Bretton Woods, como ficou conhecido o acordo liderado pelos Estados Unidos e firmado pelas 44 nações aliadas para criar o sistema financeiro que passaria a vigorar no pós-guerra. Ousmène Mandeng, prestigiado professor da Escola de Políticas Públicas da London School of Economics, é uma destas vozes.
“Deveríamos fazer isso agora. A conferência começou em 1º de julho de 1944, apenas seis semanas depois do desembarque na Normandia. [O então presidente americano] Franklin Roosevelt estava obcecado com a ideia de que, no final da guerra, seria necessário ter em vigor uma nova ordem financeira que permitisse a rápida recuperação da economia. Ele viu que isso não aconteceu após a Primeira Guerra Mundial, o que acabou levando à Grande Depressão. A guerra na Ucrânia é muito localizada, mas pode servir de gatilho para que os países se sentem à mesa de negociações novamente. Outras nações podem pensar ‘o que aconteceu aqui pode acontecer com qualquer um de nós’. E isso poderia ser aplicado em situações menos inequívocas do que a russa” disse.
Essa não seria a primeira mudança no teor do que se definiu em Bretton Woods. Pelo acordo original, o dólar americano era a referência para as taxas de câmbio globais, mas estava, por sua vez, vinculado ao ouro. Em 1971, o governo de Richard Nixon rompeu unilateralmente com a conversibilidade do dólar em ouro, o que acabou com o chamado padrão-ouro e levou a um sistema de câmbio flutuante – atrelado a uma cesta de moedas, sobretudo, o dólar, além do iene, a libra e o euro – muito mais instável.
O professor não descarta que países simplesmente saiam do arranjo atual e o mundo se veja diante um sistema fragmentado. Isso reduziria o poder de fogo do Ocidente em situações semelhantes no futuro. “É preciso pensar como fazer essa transição, que poderia envolver todos, de maneira coordenada, para que seja organizada. O novo sistema tem que ser muito diferente do que existe hoje, mais participativo. O Brasil é um dos países que têm papel importante no mundo real e nem tanto no das finanças”, afirmou Mandeng, que é ex-chefe de divisão do Fundo Monetário Internacional para Recursos Financeiros e ex-diretor da seguradora Prudential Financial e do banco de investimentos UBS. As informações são do jornal O Globo.