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Edson Bündchen Modernas contradições

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O mundo é contraditório desde que o homem passou a estabelecer relações com seus semelhantes, tentando equilibrar um conjunto crescente de demandas também contraditórias. Para os sofistas, uma das formas de acomodar as contradições e buscar a razão, na superação do conceito mitológico, era apostar na fortaleza da argumentação e da retórica, enquanto ferramentas de persuasão. Nessa lógica, o poder poderia ser conquistado por intermédio da capacidade de convencimento, das palavras, da oratória eloquente e até certo ponto manipulativa e relativista, fato que atribuiu aos sofistas uma conotação também negativa, já que o manejo da comunicação, em certo sentido, poderia construir narrativas descoladas da realidade. Desde então, as contradições filosóficas, religiosas, sociais, capitalistas, trabalhistas e históricas povoaram o cenário, conferindo cada vez maior importância ao ato de falar, agora em contexto muito mais complexo e incerto do que aquele que abrigou Protágoras e seus seguidores.

Essa estrutura que governa a forma como interagimos socialmente, mediada pela palavra, continua fundamental e adquiriu exponenciais possibilidades com o advento da internet. Hoje, a “Ágora moderna” na qual se converteu a rede mundial de computadores e seus onipresentes sites, aplicativos e outras ferramentas de interação, coloca-nos diante do monumental desafio de destrinchar a verdade numa miríade infindável de informações, que em conjunto, tecem e narram on-line o cotidiano do planeta, nem sempre com o compromisso da verdade, o que torna ainda mais crítico valorizar a boa palavra. Nesse contexto de pós-modernidade, também a pós-verdade emergiu, uma vez que é atávico ao homem se valer da mentira de modo instrumental, e isso foi historicamente recorrente. Desse modo, faz sentido e, mais do que isso, trata-se de uma agenda imprescindível, observar até que ponto os discursos de hoje se encontram encharcados do pior do sofismo, na defesa da falsidade e na intenção premeditada de confundir em vez de explicar, manipular em vez de orientar.

Um exemplo de como ainda é usual o recurso da retórica sofista pode ser observado no campo político brasileiro. Conceitos fundamentais do nosso léxico estão sendo tomados para muito além do seu sentido estrito, senão convertidos em direção oposta, inseridos em discursos cuidadosamente engendrados com a finalidade de desconcertar àqueles que paradoxalmente deveriam ser esclarecidos. Isso seria aplaudido por Schopenhauer, na versão de sua obra que ensina como ganhar uma discussão sem ter razão, mas esse não é, definitivamente, um bom conselho. Deus, pátria, liberdade e povo são, indiscutivelmente, matéria essencial para qualquer abordagem que vise conferir densidade e força ao discurso, notadamente se esse tiver o objetivo de mobilizar pessoas e engajá-las para determinado propósito. Sendo assim, haveria que se ter especial cuidado e zelo no uso desses termos, até porque são perenes e impessoais, sendo imprudente e incorreto amarrá-los a uma determinada corrente política em desfavor de outra.

Não é isso, entretanto, o que assistimos. Com notável prodigalidade, vemos a invocação de Deus, enquanto salvaguarda, somente à parte da população que aplaude àquele que invoca o divino, mas esquece de governar para todos. A pátria passa a ser apenas digna para quem está politicamente alinhado, e não mais a mãe gentil que a todos abriga e acolhe. Até o monopólio do verde e amarelo está sendo requisitado de forma unilateral. O povo, não seria mais o conjunto da sociedade, mas a parcela que coaduna com o mandatário e a tudo aquiesce. Por fim, talvez o mais nobre dos valores, a liberdade, é invocada como escudo para sua própria supressão, em engenhosa metamorfose linguística. As palavras já foram articuladas de infinitas maneiras, porém ainda incapazes de compor uma verdade através da repetição de mil mentiras. Goebbels estava errado, e nem mesmo a maior das contradições que ora vivemos irá subverter a essência do que é verdadeiro.

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A última fronteira
https://www.osul.com.br/modernas-contradicoes/ Modernas contradições 2021-08-12
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