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Por Redação O Sul | 25 de junho de 2020
O brasileiro José Ivan Albuquerque Matias, de 50 anos, chegou sedento por um suco de laranja ao restaurante do trigésimo andar de um hotel em Bogotá, capital da Colômbia, onde concedeu uma entrevista ao jornal O Globo.
Ele está com deficiência de vitamina C, depois de passar mais de três meses sequestrado por dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), grupo que não aceitou o acordo de paz celebrado pelo governo com a guerrilha em 2016.
“Esse é o caminho do cemitério”, disse um guerrilheiro a ele e a seu companheiro, Daniel Guggenheim, por volta do meio-dia de 16 de março, ao anunciar o sequestro, apontando uma arma para o peito de Matias.
“Foi a primeira vez que vi uma AR-15 de perto. Ali caiu a ficha de que a gente estava sendo sequestrado e me desesperei”, conta o brasileiro, que teve os olhos vendados para chegar ao primeiro cativeiro.
Antes, foram levados às margens do rio próximo para encontrar dois dos comandantes dos dissidentes, conhecidos pelos codinomes John e Cunhado.
Entre as marcas do sequestro, a mais visível é o fato de José Matias ter emagrecido 20 quilos e o seu companheiro, 17.
Na conversa de mais de duas horas, Matias estava sereno e bem-humorado, mas o rosto ainda abatido trazia as marcas do sequestro que chegara ao fim na manhã de 18 de junho, apenas seis dias antes da entrevista.
O brasileiro e seu companheiro, o suíço Daniel Max Guggenheim, de 67 anos, foram sequestrados na cidade de Corinto, na região do Cauca colombiano, próximo à cidade de Cali, quando viajavam de férias pelo país e viram no GPS a rota mais rápida para chegar a La Plata, destino final do casal. Acabaram se enveredando por um caminho controlado pelos ex-guerrilheiros dissidentes, algo comum em várias regiões do país.
Durante os três meses de cárcere, os dois homens passaram por 11 cativeiros diferentes até serem resgatados pelo Exército da Colômbia. Também foram mantidos reféns Fifi e seu filho, Preto, os cachorrinhos da raça Pomerânia que viajavam com os donos. Os dissidentes das Farc se comunicavam com a filha de Daniel Guggenheim e chegaram a pedir a quantia de US$ 1 milhão, cerca de R$ 5,3 milhões, valor que nunca foi pago.
Matias conta que, apesar das más condições em algumas das casas onde ficaram, em quase todas tinham um quarto próprio com cama de casal, faziam três refeições por dia (“tinha comida mas não tinha vitamina, era sempre arroz, batata frita, ovo, biscoito”) e podiam sair do quarto por algumas horas para ver novelas ou notícias na televisão, sem nunca, no entanto, terem visto qualquer notícia sobre o próprio sequestro. Também os cachorros recebiam ração.
Os dissidentes das Farc também permitiram que o casal continuasse tomando os remédios para pressão alta, no caso de José, e para arritmia cardíaca, no caso de Daniel.
Maconha e café de fachada
Gaúcho de Carazinho, ex-soldador e hoje técnico de vendas, Matias afirmou ter visto plantações de maconha em todos os cativeiros por onde passou, e algumas de coca, e que a plantação de café, também abundante, era usada para esconder os cultivos ilícitos.
Ele contou ainda que quase não conseguia dormir e que só cochilava por no máximo duas horas por noite, normalmente quase ao amanhecer. No vasto tempo livre, estudava alemão pelos livros que levara para a viagem e, nos papéis em branco que tinha, fazia contas e pensava em estratégias para a entrega do dinheiro do resgate, o que nunca aconteceu.
Rolex e nova prioridades
Dias após serem resgatados por dois helicópteros do Exército colombiano, numa operação em que segundo Matias não houve sequer um disparo de arma, o brasileiro ainda tem dificuldade para dormir, sente medo quando ouve barulho de moto e começou a fazer terapia. Viajante frequente, conta que não se importa mais com destinos luxuosos:
“Passar por isso me fez rever vários conceitos. Eu sempre quis ter um Rolex, comprei um e ficou com os sequestradores. Mudam as prioridades, acabou essa coisa de hotel cinco estrelas, vi que não há necessidade de luxo, fiquei em lugares horríveis.”
Além de se importar menos com bens materiais, José Matias tem planos de fazer trabalhos sociais e quer usar o dinheiro com o qual pagariam o resgate para construir escolas. Ele e o companheiro moravam em Buenos Aires, mas estão de mudança para Basileia, na Suíça:
“Só vou viajar agora para fazer trabalho social, e quero construir uma escola pública em cada capital do Brasil. Eu vi os filhos dos guerrilheiros com intimidade com armas, eles brincam com arma de verdade sem munição, normal. Eu não quero mais ver essa cena de uma criança brincando com fuzil.”
Perguntado se voltaria à Colômbia, ele ri: