Sexta-feira, 19 de abril de 2024
Por Tito Guarniere | 4 de julho de 2020
Em meio aos choques do Supremo Tribunal Federal-STF com o governo Bolsonaro, de repente, do nada surgiu a teoria de que as Forças Armadas-FA seriam o “Poder Moderador” da República. Isto é, na existência de conflito entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, as FA – cujo chefe supremo, pela Constituição, é o Presidente da República – seriam chamadas a intervir, para restaurar o equilíbrio e a independência dos poderes.
É uma das bobagens mais vistosas das tantas que brotam na demência febril destes tempos. Ela equivale a dizer que os militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, além das armas, seriam também os titulares da última palavra, no caso de crises institucionais.
Quem a formulou, e quem mais tenha se dedicado à tarefa leviana de disseminá-la, nem se deu conta – ou se deu além da conta – , que a interpretação pervertida do texto constitucional, no caso de um conflito dos poderes, comuns na democracia, equivaleria a legitimar um retorno imediato à supremacia militar, sem tanque nas ruas, sem quartelada, apenas com o “livrinho” (a Constituição) nas mãos.
O Poder Moderador é isso: em certas conjunturas de crise, a última instância, o Poder superior a todos os demais poderes, ainda que momentaneamente.
A Constituição de 1988 está longe de ser um modelo perfeito de funcionalidade institucional. Não lhes faltam defeitos, como a sua extensão e tamanho, os casuísmos, a intenção de regular toda a vida nacional e a sua ampla complexidade.
Quando se pretende abranger tudo, na lei ou na constituição, as disposições exaustivas de certo modo aprisionam a vida, as relações sociais, a produção dos bens e da riqueza. Ficamos engessados diante das exigências dos novos tempos, ou para situações conjunturais, como a pandemia.
A vida, regulada dos gabinetes do Estado gigante e onipresente, deixa de fluir e seguir o seu curso, perde o contato com as mudanças do mundo, e se transforma no domínio paralisante das altas burocracias, dos estamentos corporativos, conspirando contra as iniciativas genuínas e criadoras que nascem e prosperam na sociedade civil e produtiva.
A Constituição de 1988 não é perfeita por tais e outras razões. Mas os constituintes, tendo investido no esforço de uma Lei Maior abrangente, não seriam tão desatentos, a ponto de deixarem como um fio solto, no meio, uma disposição tão crucial. Afinal, foram chamados para dar um fim ao ciclo autoritário de poder e de elaborar um novo pacto nacional e democrático. E se fosse para ter um poder moderador, este jamais seria exercido pelos militares, desgastados por mais de 20 anos de regime ditatorial.
Para que as Forças Armadas – ou qualquer outra instância – pudessem desempenhar o papel de “poder moderador”, ele teria de constar textualmente, em capítulo próprio, como na Constituição de 1824, a única em que era previsto – conferido, no caso, ao Imperador. Não há tal poder por “interpretação”.
O país assolado pelas crises do coronavírus, política e econômica, uma patranha dessa envergadura ganhou fôlego e entrou na pauta de discussão pela porta dos fundos. Felizmente, parece que a descartaram de vez.
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