Segunda-feira, 07 de julho de 2025
Por Lenio Streck | 5 de setembro de 2020
Ensaio sobre a Cegueira é um livro que causa muitas inquietações ao leitor e diante do momento em que estamos vivendo, como também a forma peculiar de escrita, dá-nos a sensação de que Saramago discorre sobre fatos do nosso cotidiano.
Ensaio sobre a Cegueira, pelo seu contexto, inevitavelmente oferece pontos de aproximação com o cenário desvelado pela pandemia de Covid-19, principiada há cerca de seis meses e, ao que tudo indica, longe ainda de um desfecho. Penso assim porque a desestrutura social que Saramago põe em sua distopia, embora projete extremos que evidentemente não ocorrerão, dialoga com uma espécie de estado de natureza hobbesiano, cujo controle é inalcançável pelo Estado de sua ficção.
Vejam que, na trama, o próprio Estado, aos poucos, vai nublando, tornando-se cada vez mais opaco, sucumbindo, também, à cegueira. A questão é: por quê? Saramago, embora sabidamente um autor de forte posicionamento político e (a)religioso, está preocupado, neste texto, muito mais com conexões morais a partir de sua hipótese (a cegueira), e não com a robustez das instituições do universo da trama.
Mas arrisco a dizer que, grosso modo, é justamente essa tibieza institucional, mormente demarcada pela predação da autonomia do Direito, o que faz o próprio Estado de Direito sucumbir à doença, e não figurar, como deveria, como espaço civilizador de seu enfrentamento.
E a metáfora da cegueira? Bom o próprio Saramago punha Ensaio sobre a Cegueira como uma hipótese (um constante “e se”) que, disposta, pudesse demonstrar uma espécie de limite moral ao ser humano. Diria que a cegueira é, então, o gatilho necessário para o argumento central do autor: “Não somos bons”. Cegos, somos capazes, exclusivamente, daquilo que é instintivo, muito próprio a universos pessoalizados e incapazes de dialogar com o outro.
A cegueira é em algum sentido o estopim do egoísmo mais rasteiro. Claro, filosoficamente, isso não é novo. Vem de Hobbes. Vou além: embora o autor inglês propusesse uma forte crítica a um certo comunitarismo essencialista em Aristóteles (o homem como um animal político), caiu, a seu modo, na armadilha do oposto com um homem que, essencialmente, era o lobo do próprio homem.
Quero dizer, seu estado de natureza igualmente trouxe uma certa crença em essências – superadas tanto quanto as subjetividades advindas com a Modernidade Filosófica, sobremodo, a partir de Heidegger, Gadamer e Wittgenstein, entre outros de menor expressão.
A metáfora da cegueira, penso, cai também nessa armadilha, considerando o projeto do autor. Contudo, diria que esse “e se” também permite uma outra discussão: os desacordos morais que surgem com o mar de leite de Saramago, diante de instituições que não apenas velassem pela autonomia do Direito, mas, ainda, fossem produto dessa mesma autonomia, encontrariam, seguramente, uma intersubjetiva e oportuna resposta.
Numa linha: pouco importaria se somos bons ou maus, egoístas ou não. O Direito está aí justamente para dirimir esses desacordos.
Mas isso é assim? Olhamos para fora e vemos os descumprimentos nos mais variados aspectos. Pois é. A sociedade virou uma grande chinelagem. Uma coisa meio leitosa. Há uma cegueira forte por aí.
Tem chance de dar certo? Só se o conceito de “dar certo” for uma ficção necessariamente útil, algo como o que dizia Hans Vaihinger: um como se. Como se um dia pudesse dar certo…!