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Edson Bündchen Arriscando a pele dos outros

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Na área de gestão de empresas, o conhecido conflito de agência envolve os desequilíbrios de interesses entre os donos das organizações e os agentes contratados para geri-las. Já no campo político, a distância entre os anseios de quem vota e o trabalho exercido por quem recebe a delegação popular é imensamente maior. O fenômeno é tão mais real e impactante quantas forem as situações assimétricas nas quais alguém se coloca como beneficiário de determinada ação, não se comprometendo ou se responsabilizando na mesma proporção. Seria, nas palavras do consagrado autor Nicholas Taleb, uma opcionalidade antifrágil à custa dos outros, ou seja, uma situação na qual os riscos ficam somente com um dos lados. O assunto ganha atualidade e relevo quando é possível observar, com clareza cada vez maior, decisões políticas que colocam vidas em risco sem que haja cominações que ultrapassem apenas críticas sobre o caráter moral de tais equívocos.

Os episódios de transferência de infortúnios e fragilidades sempre existiram ao longo da história. Hoje, porém, a extrema conectividade da modernidade e a cada vez maior invisibilidade das cadeias de causa e efeito, particularmente em relação ao trabalho intelectual, tornam mais opacos os vínculos de tais ocorrências, e isso não é somente uma questão ética, mas de responsabilização objetiva. O mundo do conhecimento separou o saber e o fazer levando maior risco à sociedade. Quem toma a decisão, muitas vezes numa sala climatizada de um edifício de luxo em São Paulo, ou num gabinete em Brasília, está geralmente muito afastado do local onde a ação acontece. Esse distanciamento, juntamente com a teia burocrática existente, engendrada muitas vezes de forma ardilosa, acaba por blindar o decisor e transferir o custo de eventuais erros para o suposto beneficiário da ação. Mas nem sempre foi assim. Havia, no passado, maior envolvimento dos atores, inclusive com o risco da própria vida.

Na Catalunha, sob o implacável código de Hamurabi, conforme pôde constatar da maneira mais apavorante Francesco Castello, em 1360, existia a tradição de decapitar banqueiros falidos diante de seus próprios bancos. Os romanos, sob semelhante lógica, faziam os engenheiros passar algum tempo embaixo das pontes que construíram, e os ingleses, ainda mais severos, incluíam as famílias dos profissionais sob esse mesmo impiedoso exame prático. A transferência de custos, nesses casos, ficava extremamente desestimulada. Perdeu-se, por certo, um pouco da glória dramática daqueles tempos, mas ganhou-se em termos de avanços institucionais, porém ainda insuficientes, a considerar a facilidade com que políticos de alto coturno engendram projetos e diretrizes irresponsáveis, sem que tenham sequer o castigo de uma noite insone.

Como elementos constituintes das narrativas, as palavras têm força e podem se tornar bastante perigosas, especialmente para quem não está protegido e acredita de boa-fé nelas. Falastrões se valem da lógica perversa da opcionalidade (exercem as opções ou não) sem nenhuma desvantagem. Os riscos do código de Hamurabi não os afetam mais. Um escritor com argumentos, por exemplo, pode matar mais pessoas do que um criminoso em série, da mesma forma que alguém que equivocadamente prediz sobre os efeitos de uma pandemia ou a ignora, particularmente se as opiniões emanarem de quem antes se esperava uma postura mais sensata e austera. Enquanto não houver penalizações concretas por erros ancorados na certeza da impunidade, as cicatrizes das opiniões irresponsáveis continuarão a ser espalhadas por toda a sociedade. É tempo de, um pouco à moda antiga, começar a exigir coerência prática dos nossos homens públicos, instando-os a não somente detectar os perigos a que estamos expostos, mas evitar que mesmo na ausência de má fé, venham a contribuir para a causa de nossas tragédias. Arriscar a própria pele já não é mais suficiente. É preciso não arriscar a pele dos outros!

 

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https://www.osul.com.br/arriscando-a-pele-dos-outros/ Arriscando a pele dos outros 2020-12-17
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