Terça-feira, 06 de maio de 2025
Por Redação O Sul | 1 de abril de 2023
A grilagem de terras avança agora de forma digital na Amazônia. Criado para centralizar informações sobre a vegetação nativa, o sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) permitiu um “vale-tudo” na internet e se tornou uma ferramenta para a tomada de florestas e a invasão efetiva de territórios indígenas e da União. Nos últimos dez anos, o cadastro, que é autodeclaratório, se transformou em uma máquina rápida de produzir documentos oficiais que ligam grileiros a uma propriedade.
O mecanismo da grilagem digital atinge especialmente as terras indígenas com processos de homologação em fase inicial. Por meio de cruzamentos de bases de dados geoespaciais com milhares de registros do CAR, o Estadão identificou 325 fazendas registradas ilegalmente, entre 2014 e 2023, sobre cinco áreas que deveriam ser ocupadas exclusivamente por comunidades tradicionais da floresta.
A legislação diz que o CAR é válido enquanto os órgãos ambientais dos Estados não reconhecem a ilegalidade, ainda que as propriedades estejam flagrantemente sobrepostas a terras públicas. Como o poder público leva anos para analisar cada registro, o grileiro inscreve áreas virgens no sistema e consegue instantaneamente um documento oficial da terra. A demora na análise do cadastro dá tempo ao falsificador de se consolidar como proprietário de seu suposto imóvel. Com o papel, fazendeiros podem, por exemplo, emitir guia para transporte de gado e até solicitar financiamentos.
As projeções mostram brigas de grileiros pelos mesmos espaços e um avanço feroz de fazendeiros sobre florestas de Roraima, Rondônia, Amazonas, Pará e Mato Grosso. A grilagem digital combinada com o desmatamento se intensificou nos momentos em que o governo federal negligenciou a renovação das proibições de acesso às terras, restrição que caracteriza áreas em vias de reconhecimento por decreto.
Na criação do CAR, em 2012, o governo argumentou que pretendia mapear informações ambientais de todos os imóveis rurais do País. Cada dono de terra deve informar características hidrográficas, áreas de proteção, florestas, restingas e veredas, por exemplo. Os dados são enviados pela internet, por meio dos sites dos órgãos ambientais. O que se viu, no entanto, foi um novo mapa de áreas extensas da floresta elaborado pelo crime organizado de terras.
As fragilidades tornam o sistema vulnerável aos falsificadores e prejudica o próprio mercado de terras e proprietários do País inteiro, uma vez que o cadastro não separa o proprietário real do falsário.
Alerta
Referência na pesquisa e no enfrentamento da grilagem de terras, a promotora Eliane Moreira, do Ministério Público do Pará, disse ser urgente a atualização no sistema do CAR que impeça automaticamente cadastros sobrepostos a terras indígenas ou áreas públicas. “É uma providência para ontem”, afirmou. “O problema é que o decreto que regulamentou o Código Florestal diz que, enquanto não for analisado o CAR pelo órgão ambiental, ele é válido para todas as finalidades previstas em lei. Para quem quer desviar ele acaba sendo muito útil.”
Doutor em Geografia Humana pela USP e pesquisador de conflitos territoriais na Amazônia, o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Maurício Torres destacou que grileiros negociam terras com o argumento de que elas estão “documentadas” com o CAR. “Na prática, alimentou-se um mercado. Vendem e compram terra grilada a partir desse documento, que é um documento oficial, mas sem lastro nenhum. É como você roubar um carro e o Estado permitir que você licencie o carro roubado. Ou que permita que você cadastre o carro para trabalhar como taxista ou Uber”, disse.